*Ricardo Lacava Bailone
-Conto vencedor do XII Concurso Contos do Tijuco "Eliane Gouveia"
No meu buraco me sitio,
no leito vazio de meu rio, no meu buraco cândido e vazio, vazio de seres
corrosivos e sombrios. O pânico que habita as almas, no mundo lá fora que
sinto, retiro-me de forma branda, para ser olvidado no limbo. Enquanto buscas
lá fora, satisfação improvável, permita-me que vos diga, amigo, o ego é
insaciável. A felicidade está aqui, antes que me esqueça, não no material, mas
no interior da cabeça. Quando a flor nasce, já começa a morrer, não deixes que a
vida passe, e não volte a dizer. Refugie-se no bem, e o bem alheio lhe tornará,
reclusos um ao outro, a parede se erguerá. E foi assim que tentei minha
reclusão deste estúpido mundo que pairava sobre meus ombros. Revoltado
pacifista assíduo desde os meus catorze anos, colecionava pôsteres de meus
ídolos nas paredes de meu cubículo. Minha mãe sempre olhava com ares suspeitos,
embora eu soubesse que ela apenas não gostasse que pregasse nada na parede
recém-pintada, batalhada com o suor árduo da labuta diária. Deixava-me levar
pela luta daqueles que não pensavam somente em si, e assim, aos dezessete anos
comecei a engrenar no sistema que girava em torno das críticas desse modo de
governo iníquo e desleal, o qual a engrenagem jogava os lucros apenas para um
lado da balança.
Personificava meu estereótipo. Bermudas longas, corrente
pendurada no pescoço, boné virado para trás, óculos escuros de um de meus
ícones, John Lennon, e sempre uma camisa com uma mensagem subliminar aos
opulentos defensores desta egocracia. Possuía meu clã. Clã de animais
periféricos, com ideias diferenciadas. E enfatizo que foi na diferença que
nasceram as maiores evoluções. Concepções tidas como inaceitáveis e
inexequíveis. A normalidade consensual confrontava-se com a normalidade
instintiva. Estava farto de tanta exploração, tantas notícias falaciosas,
tantas cabeças ignorantes e de má fé. Nas mãos de caranguejos, lamacentos
animais coniventes. Corporativistas na malevolência e na divisão dos
pró-labores. Pessoas como estas que deixavam o país neste instável e corroído
leito que se encontrava, e estas mesmas, ainda tinham a insanidade mental de
culpar o mísero funcionário que não pusera as gotas de adoçante em seu café a
gosto.
Inconcluso com os resultados, resolvi que a solução seria minha reclusão.
Mas os tempos eram sombrios. Não podíamos nos esconder como anelídeos e
assistir tudo cegamente debaixo da terra. Assinavam papéis na calada da noite.
Articulavam o executivo, legislativo e judiciário. Escrachavam mentiras na
mídia para corromper a ignorante massa – e a débil elite. Retiravam direitos do
povo e crucificavam-nos aos próprios interesses. Via meu pai na azáfama feito
roda de água para manter o modesto, mas digno lar. Não só ele, mas eu também
contribuía. Trabalhava meio período ajudando-o em sua mecânica de automóveis,
no puxadinho de minha casa. Na escola, gastava o resto do tempo, entre
paqueras, camaradagem e um pouco de estudo.
Assim, após dois meses olvidados em
minha casa, o telefone tocou. Vesti aquela peita onde nas costas a letra
maiúscula “A” sobrepunha-se a “O”. Anarquia e Ordem. Saí para clamar minha
independência. A juventude ainda tinha a vida pela frente. Minha testosterona
clamava pela vivacidade, além do que minha menina estaria lá. As ruas estavam
cheias, a multidão aglomerava-se cada vez mais. Gritos de ordem, baterias, vontade
de mudança. Consolidava minhas ideias com as alheias, tornando aquela presença
ainda maior. Um espetáculo humano. Pensei, ainda existe esperança! Vi de longe
minha garota. Mesmas roupas, mesmos estilos. Também bravejava palavras de
ordem, como eu. Fui me aproximando, mas o barulho era ensurdecedor, e o anelo
pela metamorfose social e coletiva, demasiado. Uns empurravam os outros, o
espaço estava cada vez mais exíguo. Ela olhou para mim. Sorriu. Nos fitamos por
um momento. Fui empurrado fortemente contra um poste, e quando me dei por si,
ela já não estava mais ali. O desespero se acentuou. Pânico nos olhares. Sem
medo e sem dó. A ordem estava dada. Já não mais a via. Todos corriam. E eu
decidi fazer o mesmo, procurando um lugar seguro.
Barricada, tiros de bala de
borracha, gás lacrimogêneo, repórteres correndo em busca das melhores imagens, sujeitas à
censura e cortes no horário nobre, socos, pontapés, spray de pimenta, bofetada
na orelha, zumbido, imagens espaçadas, escuridão. Um espetáculo desumano.
Disseram que tem alguém desmaiado. Muito sangue corre pelo chão. Parece que
ignoram aquele corpo estendido na superfície. Não obstante, alguns protestantes
arriscam-se em carregá-lo em busca de ajuda.
Fatos que só tomei por mim nos
noticiários da nauseante mídia já descrita por Orwell, com informações
completamente inverossímeis. No hospital, olvidado por três meses, recebi
algumas visitas, que me viam como um sobrevivente guerreiro. Um baderneiro e
irresponsável para os ignóbeis e chulos, que brincam com a vida alheia, sem
perceberem que a existência será lépida para todos. O zumbido ainda me
acompanha, juntamente com a solidão. Agora, ao protesto, assisto sentado em uma
cadeira de rodas. Recuperando-me de um trauma ainda não curado. Início do ano
recebi a notícia de que havia passado no curso de odontologia em uma boa
universidade pública, sonho de minha mãe. Mas penso em não me matricular. Ainda
estou muito vulnerável a todas estas mudanças repentinas. Sei que sairei desta,
pois sou um pugilista nato, embora por si só, sem nunca ter tido apoio do
Estado. Neste regime fechado não me calarei, frente a esta condução cega e
indirigível, assim como muitos outros, fui, sou e serei, apenas mais um
combatente invisível.
Apenas mais um injustiçado no mundo.
*Ricardo Lacava Bailone
Médico veterinário graduado pela Universidade Estadual Paulista, mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista e Harper Adams University (Sanduíche Reino Unido). Servidor Público Federal do Ministério da Agricultura, membro da International Society of Applied Ethology, possui vários artigos científicos publicados em periódicos conceituados nacionais e internacionais de sua área de atuação. Mais de vinte participações em antologias com classificações e menções honrosas. Vencedor do XIV Prêmio Literário Livraria Asabeça 2015 com a obra "O canto do Urutau (A lenda da mãe-da-lua)". publicada na 24ªBienal Internacional do Livro de São Paulo em 2016.
- (Agora, também, vencedor do XII Concurso Contos do Tijuco 2017)